sábado, 12 de março de 2011

Manobra do bem

Causos do ECA

29/08/2008
Manobra do bem -
Sandro Soares dos Santos
[Testinha]


Minha história começa em 1978, bem antes do “nascimento” do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Naquele ano, eu chegava ao mundo – mais precisamente, à periferia da Zona Leste de São Paulo. Vida na periferia das grandes cidades, todos sabem, não é nada fácil. Porém tive a “sorte” de crescer em uma família que, apesar de poucos recursos financeiros, pôde oferecer o melhor a mim e a meus irmãos, garantindo nossos direitos fundamentais que, mais tarde, seriam sagrados no ECA.

Mesmo sem ter a menor idéia de que o ECA um dia viesse à luz, tive uma formação que valorizava o respeito, a dignidade e a boa convivência familiar e comunitária. Não era esta, evidentemente, a realidade a minha volta. Na escola, pública, eu convivia com crianças vindas dos mais variados tipos de família – das “boas” àquelas desestruturadas, nas quais os pais bebem, usam drogas e batem nos filhos.

Dei sorte. Logo percebi que, em minha família, estavam meus melhores amigos, o meu esteio. Pois foi da minha família que, involuntariamente, ganharia um presente que, lá na frente, poria o ECA no meu caminho – ou melhor, sob meus pés. Era um Natal da década de 80. Meu pai, que à época trabalhava em um grande frigorífico, chegou em casa com dois presentes embrulhados: um skate para meu irmão mais velho e um submarino para mim. Como toda criança curiosa, mexi nos pacotes e troquei as etiquetas, pois o que queria mesmo era a tal prancha sobre rodinhas.

O plano deu certo. O que eu não sabia era que aquele brinquedo mudaria a minha vida e a de outros jovens que, apesar da mesma origem da periferia, não haviam tido a chance de uma boa formação. Em princípio, apenas andava e competia no skate, esporte que passei a levar como estilo de vida.

Um esporte visto por muitos como “marginal” poderia ser o divisor de águas para aqueles garotos

No ano 2000, as coisas mudaram. Eu já não era simplesmente o Sandro Soares. Ganhara, nas ruas e pistas, o apelido de Téstinha. Naquele tempo, descobri que haveria uma demonstração de skate na famosa e extinta Febem do Tatuapé. Não havia sido convidado, mas dei um “jeitinho” de participar, pois tinha curiosidade de saber como era o lugar onde vários amigos de infância iam parar. Naquele dia, tudo era aparentemente muito legal. Os jovens assistiam extasiados às performances dos skatistas, mas havia um vazio. Eles não podiam andar de skate e sentir de perto a vibração da cultura do esporte.

Passei aquela noite sem dormir, pensando no que poderia fazer para ajudar. Afinal um esporte visto por muitos como “marginal” poderia ser o divisor de águas para aqueles garotos. Passei a telefonar todos os dias para a antiga Febem, pedindo para fazer um trabalho voluntário. Daria aulas de skate no Tatuapé.

Não foi fácil, reconheço. Mas consegui manobrar diante das dificuldades. As aulas, aliás, tinham esse espírito. Na dificuldade de aprender um esporte radical, eu procurava passar um retrato da vida: todos temos obstáculos que devemos superar e, ao cairmos, precisamos levantar e dar a volta por cima. Afinal, os tombos, quando você entende porque caiu, o ensinam a voltar para o caminho certo. Basta refletir.

Em 2004, tive a minha grande experiência de vida. Conheci um aluno, o Miguel. Ele já havia andado de skate antes de ser internado na Febem. Estava na quinta passagem e era considerado um caso sem solução. Mas Miguel logo entendeu que a fibra do bom skatista valia também para a vida.

Nas aulas, ele aprendeu a importância dos tombos e as lições que o skate dá. A primeira delas - corrigir as posições erradas - é o meio de atingir o sucesso. Nas manobras e na vida. A segunda: nunca desanimar quando as dificuldades surgirem. Nas manobras e na vida. A terceira: dominar a si próprio, para obter êxito. O skate, afinal, imitava a vida em suas manobras.

Mas não era só. O desafio não era apenas fazer com que os meninos andassem de skate. Era preciso que se interessassem pela escola, o que Miguel e os demais não levavam em conta. Passei a usar o skate para validar matérias escolares. Um exemplo: os nomes das manobras, como os giros de 180 e 360 graus, estavam presentes na Geometria. A força usada para saltar com o skate obedecia às Leis da Física teórica, ensinada nos bancos escolares das unidades. O mesmo com o Inglês, que dava o nome à maioria das manobras.

Expliquei-lhe que a vida honesta não seria fácil, mas que traria recompensas, como a valorização da liberdade para cumprir seus deveres e ter seus direitos

Passou o ano, e Miguel foi desinternado. Dias depois, ele me procurava. Senti alegria e surpresa, pois era o primeiro ex-interno que vinha a mim para seguir o caminho do skate. Ele queria seguir o caminho do bem.

Num encontro no centro de São Paulo, expliquei-lhe que a vida honesta não seria fácil, mas que traria recompensas, como a valorização da liberdade para cumprir seus deveres e ter seus direitos. Disse-lhe ainda que só a força de vontade e a perseverança o manteriam no caminho.

- Mas isso é o que faço, quando ando de skate!, exclamou Miguel.

Ficamos amigos. Miguel aprendera que o skate imita a vida. Teve que, a princípio, aprender a fazer as escolhas certas, que nem sempre eram as mais prazerosas. Mas ele pegou a lição e não caiu mais. Logo vieram os primeiros patrocínios, campeonatos, fotos em revistas e matérias na TV. Ele não apenas se tornara um atleta: era também um cidadão.

Miguel foi a primeira prova de que o skate e o ECA podem andar juntos. Mesmo que ele não virasse um skatista de competição, havia aprendido os valores essenciais que todos os educadores, a sociedade e as famílias devem ensinar a seus filhos. Vivia agora uma vida de respeito ao próximo e de gozo pleno de seus direitos. Havia feito a manobra: no skate e na vida.

Miguel não foi o último nem o único. Depois de alguns sucessos, o projeto voluntário virou um programa oficial da Fundação CASA, o Skate na CASA. Já atendemos a milhares de jovens. Seis deles seguiram o caminho do skate. Alguns, como Miguel, viraram professores. Eles são a prova viva de que nunca é tarde para pôr em prática os artigos do ECA. Afinal, uma criança, mesmo sendo pobre, deve ser criada com todos os direitos básicos, para que um dia, como na minha história, ela possa colaborar na educação de seus semelhantes.

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